'O Livro do Império': A quem se deve a publicação d'Os Lusíadas'?
'O Livro do Império', de João Morgado, foi publicado pelo Clube do Autor em 2018
Sinopse
Século XVI. Os tempos gloriosos do império português chegam ao fim. O desejado rei D. Sebastião vive para os sonhos de glória. Cego à corrupção da nobreza que prospera aquém e além-mar, permite que a Inquisição imponha o obscurantismo, acusando e julgando as mentes mais iluminadas. Contra tudo e contra todos, um poeta-soldado caído em desgraça decide contar a história épica de um povo para o relembrar da grandeza de outrora e salientar o desvirtuamento do poder que se vive no reino. Mesmo sabendo que corre perigo de vida.
Como era a vida dos portugueses de então e como interagiam com os outros habitantes nos territórios além-mar do império? Com tantos inimigos no poder, como pôde ser publicada uma obra que era provocadora aos olhos da Corte e da Inquisição?
Opinião
A leitura não é fácil apenas e somente devido à linguagem utilizada, uma vez que o autor recorre àquela que se usava no século XVI e à qual eu não estou habituada. Mas uma vez habituada, a leitura corre capítulo sobre capítulo.
O que mais me impressionou nesta obra foi a capacidade de João Morgado conseguir contar a história de vida de Luís Vaz de Camões ao mesmo tempo que conta o estado em que se encontra o então império português, sendo que a ‘cereja no topo do bolo’ é o facto de o autor inserir no meio da narrativa versos do poeta.
A construção narrativa é brilhante, pois ajuda-nos a perceber que determinado momento contribuiu para a criação de determinado verso e/ou poema.
Luís Vaz de Camões
Eu pessoalmente nunca me debrucei sobre Camões e a sua vida e depois de ler este livro fiquei com uma visão dupla sobre o grande poeta português. Por um lado, lamento a difícil vida que teve, cheia de injustiças provocadas pela cólera de pessoas bem colocadas na sociedade de então, posição que lhes permitiu castigar Camões; por outro lado, muito do que lhe aconteceu foi resultado da sua personalidade tempestiva.
O poeta era dado a grandes paixões desmedidas, acabando por importunar, e por vezes humilhar, outras pessoas com a beleza das suas palavras e dos seus versos. E considerava-se melhor do que os outros. Quando recebia conselhos literários dos seus amigos que não iam ao encontro do que queria ouvir logo lhe fervia o sangue!
Mas Camões foi também alvo da sua inocência em acreditar numa Pátria que só ele reconhecia: grandiosa, importante, dominadora.
Que glória, Camões? Se este império se definha em Lisboa e se desgasta nas Índias?
A verdade é que o grande poeta que hoje todos celebramos teve uma vida muito difícil com várias passagens pela prisão e por diversos territórios do vasto império português.
Esta experiência de vida foi o que lhe permitiu escrever com a grandiosidade que lhe é reconhecida 'Os Lusíadas'. Mas também é verdade que a obra só foi publicada graças ao empenho dos seus amigos, pois Camões era um pobre coitado, sem dinheiro, sem trabalho e com muitos inimigos da corte resultantes dos seus versos – por vezes lascivos.
Camões morreu doente e praticamente na miséria, conseguindo sobreviver graças à ajuda dos seus amigos influentes que lhe dispensavam algumas coroas que lhe permitissem ter comida na mesa e alguma dignidade na sua sobrevivência.
As personagens
Camões é, sem dúvida, a personagem principal, Mas não é a única. Há também a mulher de negro que aparece em vários momentos da trama, sempre acompanhando o poeta, muitas vezes sem ele se aperceber.
Entre os grandes amigos de Camões que o ajudaram a conseguir publicar a sua obra e a conseguir sobreviver contam-se Jau (um nativo asiático que conhece a bordo da nau Santa Clara, no regresso a Portugal e que se torna o seu fiel companheiro até ao dia da sua morte); Manoel de Portugal, Diogo do Couto e Cristóvão de Távora. Foram estes os grandes pilares para que a sua obra fosse publicada.
Temos também D. Sebastião sobre quem nunca li muita coisa (não é um rei que me cative) e sobre quem fiquei com a pior das impressões: fraco física e psicologicamente, orgulhoso e vaidoso demais (tanto que milhares de portugueses morreram na batalha de Alcácer-Quibir sem que para isso houvesse necessidade).
Temos também o cardeal D. Henrique – que autoriza a publicação d’Os Lusíadas porque a obra criticava a união das nações da Península Ibérica desejada por Espanha e porque era uma forma de afrontar os irmãos Câmara (aquela vingança pessoal tão típica) – dois jesuítas que tinham plena influência sobre o jovem rei.
A interação destas personagens ao longo da obra permite-nos perceber como é que o império português caiu estrondosamente; como as oportunidades que o país teve para se desenvolver ficaram cativas no interesse pessoal de cada um; como o rei, em Lisboa, rodeado pelas pessoas erradas, não fazia a menor ideia do que se passava nos seus territórios além-mar.
A história
O Cardeal D. Henrique concordou em publicar 'Os Lusíadas' porque eram uma crítica à união das nações da Península e porque, acima de tudo, queria evitar que Espanha tomasse Portugal como seu território. O tio-avô de D. Sebastião concorda também que a pátria precisa de se unir, vendo n’Os Lusíadas, que cantam as conquistas do povo, o mote para o regresso de Portugal à grandeza. “São certeiros no seu falar e deitam sal nas feridas que se abriram em Portugal”, diz o cardeal.
Mas antes de ser publicada, a obra foi rejeitada pela Inquisição (minada pela influência dos Câmara).
Interessante é também a visão que nos é dada dos Descobrimentos. Na escola estudamos que se trata da maior e mais bela empreitada de Portugal, mas a verdade é outra: as embarcações eram um cemitério de pessoas que morriam de fome e doenças. Os piolhos eram uma praga, tal como as ratazanas que atacavam as pessoas e as descarnavam à falta de alimento, vivendo todos juntos, durante os meses que duravam as viagens marítimas, em pequenos cubículos que tresandavam a dejetos.
Houvesse uma estrada das Índias até ao reino e estaria toda calçada de ossos de portugueses perdidos em tão arriscada viagem
Conclusão
‘O Livro do Império’ é uma obra brilhante escrita com base numa enorme investigação feita por João Morgado, como comprovam as quase 50 entradas na bibliografia do livro.
O autor conta-nos como Camões viveu e morreu na pobreza. Como a inveja da sociedade reinante não o deixou viver à luz do que significava a sua obra.
E a verdade é que esta é uma história do Portugal do século XVI que continua a ser atual: ao homem só é dado reconhecimento post mortem; a sociedade está cravada de interesses pessoais que colocam para último plano o interesse nacional, o interesse do povo na sua totalidade.
Basta olhar para os altos cargos públicos para percebermos que assim é: o primo, o amigo, o cunhado, o filho... uma imensidão de gente próxima de alguém influente que de nada tem de próximo ao desígnio nacional que, por sua vez, cada vez mais se afunda na imensidão da ganância, esquecendo-se as gentes que um dia tudo acaba, para cada um, e para todos.
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☝️ Pontos Positivos: conhecer melhor a vida de Luís de Camões, bem como a sua mente e a sua personalidade
👇 Pontos Negativos: Uma escrita não muito fácil de digerir
⭐ Avaliação: 4,5 estrelas