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Book Stories 2.0

Porque todos os livros contam uma história

Book Stories 2.0

Porque todos os livros contam uma história

Entrevista ao autor José Manuel Garcia

Book Stories, 26.10.20

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O historiador José Manuel Garcia é o autor do livro 'Fernão de Magalhães, herói, traidor ou mito', uma obra que nos conta como Fernão de Magalhães concebeu o seu plano de ir às Molucas e como isso fez dele o primeiro homem a fazer uma circum-navegação.

Em conversa com o autor - diria melhor uma lição de História - fiquei a image003[7483].jpgconhecer melhor esta figura tão importante da história nacional e tudo o que esteve por detrás desta viagem história.

José Manuel Garcia falou, nesta entrevista, não só de Fernão de Magalhães, mas também do Infante D. Henrique e da forma como Portugal, enquanto povo, encara a sua identidade história.

 

Fernão de Magalhães teve uma relevância histórica comprovada, mas quando na escola se estudam os Descobrimentos, ao seu nome não é dada uma relevância como a que é atribuída a Vasco da Gama ou Pedro Álvares Cabral. Porquê?

Tal realidade deriva do facto de se quererem valorizar mais os descobrimentos do caminho para a Índia e do Brasil realizados respetivamente por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral porque foram feitos ao serviço de Portugal e dos seus interesses enquanto Fernão de Magalhães realizou a sua grande viagem de descobrimento ao serviço de Espanha e contra os interesses do rei D. Manuel I. Ainda assim o grande mérito científico deste navegador tem já sido devidamente destacado nas escolas.

O mérito da capacidade de realização de Magalhães ao fazer a sua viagem sempre lhe foi reconhecido em Portugal desde o século XVI, o que só a partir do século XIX sucedeu foi o facto de então ter perdido o cunho de traidor que lhe havia sido dado pelas autoridades no tempo de D. Manuel e de D. João III, bem como da maior parte dos cronistas portugueses. Desde meados do século XIX Magalhães passou mesmo a ser considerado um herói em Portugal devido ao feito que realizara o que passou a ser divulgado.

Já tinha escrito sobre Fernão de Magalhães. O que traz este livro de novo?

Neste livro mostrei definitivamente que ele era natural do Porto; que foi em Lisboa que entre 1516 e 1517 ele concebeu o seu projeto de ir às Molucas por ocidente; que os portugueses que foram na armada de Magalhães foram em número de trinta e quatro, contando com ele; que em 1512 ele foi às Molucas e na sua sequência foi o primeiro homem a ter dado uma volta ao mundo em duas partes, tendo assim mostrado pela primeira vez a Terra tal como ela é.

Qual a revelação mais importante feita nesta obra?

O que mais importante eu revelei foi que a importância simbólica e real da descoberta e ultrapassagem do estreito de Magalhães permitiu ao grande navegador quando logrou passar o extremo sul da América percorrer todo o enorme oceano Pacífico e assim chegar à Ásia conseguindo concluir a primeira circum-navegação feita de forma indireta à volta da Terra. Com efeito ele já havia logrado realizar por oriente a outra metade dessa volta ao Mundo ao ter ido entre 1505 e 1512 de Lisboa até às Molucas do Sul. Foi dessa forma que ele conseguiu experimentalmente perceber como era o nosso globo na realidade e que nele a parte aquática era muito maior que a terrestre. São esses os grandes méritos de Magalhães na História da Humanidade.

Ressalvei ainda a máxima relevância do facto de Magalhães ter sido o maior descobridor de todos os tempos pois teve o grande mérito da conceção e execução da parte mais notável, original e difícil da mais extensa viagem de descobrimento que foi feita na História e ele planeou e chefiou entre 1519 e 1521. Durante a sua realização ele revelou vastíssimas regiões do planeta até aí desconhecidas dos europeus bastando dizer que só à sua conta ele descobriu 20 000 km, isto é, metade da circunferência da esfera terrestre. Com efeito tal é a distância por ele descoberta medida no Equador entre as longitudes de terras a sul do Rio da Prata (34º 52’ S; 56º 10’ O), e a ilha de Cebu (10º 17’ N; 125º 51’ E) nas Filipinas.

Esta realidade resultou, pois, do facto de Magalhães ter descoberto os seguintes espaços: 1 - A parte meridional do continente americano a sul do Rio da Prata.  2 - O estreito de Magalhães, que permitia a navegação entre o oceano Atlântico e o oceano Pacífico.  3 - A parte sul da costa do Chile até cerca de 32º S.  4 - Toda a extensão do oceano Pacífico.  5 - As Filipinas.

Considerando todas as viagens realizadas por Magalhães entre 1505 e 1521 afirmámos que ele foi o primeiro homem a conseguir navegar integralmente todos os oceanos sendo por isso que percecionou experimentalmente o facto de eles banharem os continentes permitindo assim ligá-los entre si por uma via marítima.

 

 

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Afirmou que Fernão de Magalhães fez a circum-navegação por proveito próprio. A verdade é que quando pensamos nos grandes navegadores vemo-los sempre como um estandarte máximo de virtudes. Onde ficam os defeitos dos homens?

Não fosse o desejo de Magalhães se ter querido vingar de D. Manuel, por dele se considerar desonrado visto este não lhe ter aumentado o seu salário nem deixado ir às Molucas por oriente para ir ter com o seu amigo Francisco Serrão, e não teria realizado a viagem que o imortalizou. Foi pois esse sentimento negativo que está por detrás da realização do seu grande feito.

Como descreve a personalidade de Fernão de Magalhães?

Ao caracterizarmos Magalhães numa perspetiva psicológica e de temperamento podemos dizer que era: ambicioso, astuto, audaz, autoritário, combativo, confiante em si mesmo, corajoso, determinado, hábil, irritadiço, justiceiro, lutador, otimista, persistente, perspicaz, resiliente, tenaz, valente, vingativo e voluntarista.

Era também especialista em várias ciências.

Sim, Magalhães era especialista em Náutica, Astronomia, Geografia, Cartografia, Meteorologia e Matemática; curioso em conhecer novas terras e novas gentes; solidário com amigos e subordinados; duro com rivais e opositores; de opiniões firmes e frontais; sem medo; com espírito crítico; intransigente na defesa das suas opiniões, mas por vezes conciliador; interessado por economia e empenhado na obtenção de lucros com empréstimos e negócios de especiarias; resistente à fome, à sede e à doença; sedento de honrarias e muito cioso de pontos de honra; muito religioso e proselitista da fé católica; respeitador dos nativos que encontrou, a não ser em situações extremas; fiel aos senhores que nele confiavam; calculista, mas também por vezes ingénuo e com excesso de confiança.

Fernão de Magalhães foi um Herói, um traidor dos interesses portugueses ou é tudo um mito?

Fernão de Magalhães é tudo isso, pois foi inegavelmente um grande herói ao ter conseguido realizar a viagem de descobrimento mais longa e difícil de todos os tempos e de ter descoberto metade da Terra. Contudo, não deixou de ser traidor ao seu rei “natural”, D. Manuel, porque foi contra os seus interesses, embora não lhe fosse proibido servir um rei estrangeiro, desde que não prejudicasse os interesses de Portugal. Finalmente Magalhães tornou-se um verdeiro mito por ter sido o primeiro homem a ter dado uma volta à Terra permitindo assim conhecer como ela era na realidade. Ele transformou-se assim no mito do primeiro homem a iniciar a globalização.

Considera importante que os heróis sejam conhecidos também pela sua humanidade e características próprias de um ser humano que comete erros?

Sem dúvida, porque Magalhães era um homem de carne e osso e, como tal, tinha as qualidades e os defeitos que todos nós temos, cada um à sua maneira.

Se tivesse de eleger uma personalidade como o grande e maior nome dos Descobrimentos Portugueses quem seria?

O Infante D. Henrique, porque foi o iniciador do processo dos Descobrimentos. Foi graças a essa personalidade que se começou o mais difícil, que foi começar, pois até ao seu tempo ninguém tivera, nem quisera, avançar com a iniciativa de mandar descobrir terras desconhecidas ou por medo ou por não ver vantagens nessa realização.

Porque é que o rei português menosprezou Fernão de Magalhães? Não acreditou no potencial da viagem ou achou que o que Portugal já tinha descoberto era suficiente e não valia a pena uma investida neste sentido? Ou foi tudo uma questão de política com Espanha?

Na história de Magalhães há algumas confusões que é necessário desfazer. Começamos por afirmar ser  errada a afirmação de que ele teria apresentado a D. Manuel a sua pretensão de querer fazer uma viagem às Molucas por ocidente, ou mesmo a de querer dar uma volta ao mundo, e que teria sido por este rei se ter recusado a aprovar essas suas intenções e pretensões que ele foi apresentar a sua proposta a Carlos V, que a aceitou. Tais noções são falsas pois resultam apenas de uma atitude em que se copiou a situação ocorrida em 1483 com o genovês Cristóvão Colombo, quando neste ano ele pediu apoio a D. João II para realizar o seu projeto de ir à Ásia por ocidente, o qual lhe foi de facto recusado em Portugal.

Em 1516-1517, Magalhães nunca se poderia ter colocado numa posição idêntica à de Colombo, pois o seu plano era pura e simplesmente contrário à política dos portugueses, os quais queriam dominar o comércio de todas as riquezas da Ásia apenas pela rota oriental do cabo da Boa Esperança, que era aquela que lhes era consentida pelo clausulado do Tratado de Tordesilhas e seguiam desde que Vasco da Gama a abrira entre 1497 e 1499.

Há ainda que evidenciar o facto de não ser possível a Portugal permitir a realização das ideias que Magalhães concebeu em 1516-1517, pois a viagem que ele se propunha fazer consistia em rumar para sul e ocidente do Brasil e de seguida passar apenas por áreas da exclusiva navegação de Castela, tal como ficara definido pelo Tratado de Tordesilhas. Assim sendo, estava evidentemente proibida a D. Manuel qualquer possibilidade de deixar portugueses fazerem viagens por vias ocidentais para irem ao Oriente ultrapassando a linha de demarcação entre domínios de Portugal e Castela e entrar nos deste reino que se situavam para ocidente de 47º 28’ O.

 

 

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Qual era o grande objetivo de Fernão de Magalhães?

Na história de Magalhães é essencial assumir claramente a noção de que ele nunca quis fazer ou sequer pensou fazer uma viagem à volta ao mundo de forma direta e ininterrupta, além de que obviamente nunca a fez, pois foi morto nas Filipinas em 1521. Há por isso que explicar que Magalhães, ao ter concebido e iniciado entre 1516 e 1519 a sua grande viagem para ocidente, tinha apenas finalidades económicas e políticas que passavam por pretender chegar às Molucas do Norte e aí provar que, devido à sua longitude, tal como ele então a calculava, pertenciam a Castela. Dessa forma ele iria assegurar a sua posse a este reino, entregando-lhe os respetivos e tão cobiçados lucros inerentes ao comércio das especiarias que aí se fazia.

Não foi então objetivo fazer uma contínua circum-navegação.

Não tem qualquer fundamento a noção muito generalizada de atribuir a Magalhães a conceção de ter planeado e desejado realizar de forma contínua uma primeira circum-navegação da Terra.

O navegador português acreditava na existência de uma passagem no sul da América que viabilizasse uma rota mais vantajosa e proveitosa de chegar à Ásia por ocidente, do que a rota oriental seguida até então pelos portugueses pelo cabo da Boa Esperança, a qual era uma via muito difícil e morosa. Ele queria assim retomar em novos moldes e concretizar o projeto de Cristóvão Colombo, com fundamentos científicos mais precisos.

A reforçar e provar esta realidade óbvia há que sublinhar ter Magalhães recebido reiteradamente ordens terminantes de Carlos I a interditar à sua armada a possibilidade de entrar no hemisfério oriental sob o domínio exclusivista de D. Manuel. Por tal motivo ele não deveria desobedecer a essas ordens e vir por águas portuguesas do Índico para assim dar uma volta ao mundo de seguida.

Magalhães só poderia e deveria ir à região das Molucas por Carlos V o autorizar a fazê-lo na medida em que ficara persuadido dos argumentos que ele lhe apresentara sobre estarem tais ilhas na sua parte do mundo.

É absolutamente seguro afirmar que Magalhães queria e devia fazer uma viagem de ida e volta pelo oceano Pacífico sem nunca passar pelo oceano Índico, pelo que nunca poderia querer dar uma volta à Terra feita de seguida e de forma direta.

O que correu mal (e bem) com a viagem?

O que correu pior foi o facto de Magalhães não ter suposto que fosse tão difícil descobrir o estreito que levaria o seu nome, sendo obrigado a invernar largos meses na Argentina e o facto de não ter encontrado ilhas que lhe pudessem servir de escalas de apoio e recolha de alimentos durante a sua travessia do Pacifico.

O que lhe correu melhor foi o facto de ter conseguido chegar à Ásia por ocidente como ele queria fazer.

Portugal, enquanto povo, dá o valor devido ao seu passado histórico?

Dá valor, mas devia dar muito mais, pois considero que Portugal é a sua História.  E assim é porque sendo Portugal o fruto da sua História só por ela se compreende.

O nosso país constitui uma identidade feita de História que resulta das ações daqueles que habitaram o seu território ao longo dos últimos nove séculos e, por isso, é necessário manter viva a memória do que foi uma tão longa duração, o que leva à imprescindível necessidade de conhecermos a História de Portugal.

A História é a guardiã de uma memória identitária e, por isso, uma mais-valia cultural inegável e inigualável que devemos acarinhar e enobrecer como um bem cultural valioso.

Há assim que promover mais a História de Portugal de todas as formas possíveis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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